domingo, 6 de setembro de 2009

Vício de Branco



O drama dos médicos que cedem ao apelo das drogase se tornam dependentes de morfina

"Saí do quarto e apliquei uma ampola inteira de morfina na veia. Foi como um orgasmo. A sensação de bem-estar nascia no umbigo e se espalhava para o resto do corpo. A dor da alma se dissipava. Em duas semanas, estava viciado. Foi o começo do inferno. Eu me aplicava umas doze vezes por dia. Se demorasse mais de uma hora para tomar uma nova dose, surgiam os sintomas da abstinência – ansiedade, suores, frio na barriga, diarréia. Hoje estou livre da dependência, mas ainda sonho com as sensações maravilhosas da droga. Todos os dias acordo com medo de não resistir e voltar a usar."
O depoimento acima é do médico R.J., um clínico-geral de 31 anos. O quarto a que se refere pertence a um dos mais importantes hospitais do interior de São Paulo. Aquela primeira dose aconteceu numa noite de inverno em 1996, depois de um de seus piores plantões, passado ao lado de uma paciente em estado terminal. Exausto, emocionalmente abalado, o médico correu para o banheiro, enterrou a agulha no braço e injetou morfina na veia. Um derivado do ópio, a substância é de uso restrito ao ambiente hospitalar, como anestésico e analgésico no tratamento de doentes acometidos de grande dor física. É, pode-se dizer, a versão legal da heroína, a mais devastadora das drogas. Consumida em excesso e com freqüência, vicia e pode levar à morte por parada cardiorrespiratória. O doutor R.J. sabia perfeitamente o veneno que estava jogando corpo adentro. Mas sucumbiu ao milagre do prazer instantâneo da morfina – e, conseqüentemente, à posterior agonia do vício. Durante um ano, ele foi incapaz de trabalhar sem a droga, colocando em risco não apenas a própria vida, mas a de seus pacientes.

Claudio Rossi
"Talvez não devesse ter sido médico, porque me envolvia demais com as dores dos pacientes. A droga me trazia alívio num passe de mágica. O sentimento de impotência simplesmente sumia."
R.J., 31 anos, clínico-geral e ex-dependente


Claudio Rossi
Drogas de uso hospitalar: atração fatal ao alcance da mão do médico
Histórias como a do doutor R.J. são comuns nos corredores dos hospitais. O vício da morfina entre os homens de branco é um fenômeno mundial de tal dimensão que já é considerado uma espécie de doença ocupacional. Algo similar aos problemas pulmonares que afetam os trabalhadores das minas de carvão. Raras, no entanto, são as categorias profissionais com uso tão acentuado de um único tipo de droga. Dos 9.600 médicos americanos entrevistados num estudo da Universidade da Califórnia, publicado no respeitado The Journal of the American Medical Association, cerca de 20% usaram opiáceos. A incidência é impressionante, duas vezes superior à média de consumo de drogas da população em geral. O consumo de morfina e substâncias similares entre os médicos só perde para o álcool (veja quadro). No Brasil não se tem números precisos, mas não há razões para supor que o abuso seja menor, visto que as condições de trabalho são piores. Somente sob a supervisão da psiquiatra carioca Maria Tereza de Aquino, diretora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, passaram oitenta médicos viciados nos últimos oito anos. "O mais preocupante é que esses médicos estão na ativa, atendendo em UTIs, aplicando anestesias ou participando de cirurgias", diz ela.

"Vivia ansioso para ficar a sós com a droga. Meu organismo pedia mais e mais. Hoje, reassumi o controle de minha vida. A sensação de estar limpo é maravilhosa."
Samuel Paulo Thomas, 38 anos, cirurgião
O que leva tantos médicos a usar morfina é o stress típico da profissão e a facilidade de acesso ao medicamento. Diferentemente dos dependentes de maconha, cocaína ou heroína, os médicos não precisam lidar com traficantes nem freqüentar pontos-de-venda de entorpecentes para obter a droga preferida. Como as ampolas de morfina e suas variações, como dolantina ou fentanil, só estão disponíveis nos hospitais, tornaram-e um vício quase exclusivo da classe médica. "Eu era um drogado de luxo", diz o ex-anestesista paraibano José Antonio Ribeiro Silva, de 49 anos. "Abria o armário onde ficava o estoque de opiáceos e me servia." Silva serviu-se livremente por sete anos, alguns dos quais como chefe do departamento de anestesia de um dos mais importantes hospitais de referência para o tratamento de câncer, em São Paulo. Muito de seu sucesso profissional foi alcançado graças a sua capacidade de trabalho aparentemente inesgotável. Para estar sempre alerta, ele recorria – e todos os colegas sabiam, diz – a um poderoso combustível: um coquetel à base de morfina e dolantina. Só se livrou da dependência com uma internação de 45 dias. Depois do susto, abandonou a anestesiologia, especializou-se em psiquiatria e hoje se dedica ao tratamento de dependentes químicos.

"O mais preocupante é que esses médicos estão na ativa, atendendo em UTIs ou participando de cirurgias."
Maria Tereza de Aquino, psiquiatra carioca
"A sós com a droga" – Infelizmente, nem sempre se pode contar com o sucesso da recuperação. O anestesista paulista J.V., pai de três crianças, morreu de overdose no dia 8 deste mês, aos 38 anos. O corpo foi encontrado em casa, ao lado de três ampolas vazias de morfina. Cerca de um mês antes, em entrevista a VEJA, ele garantiu ter vencido a luta contra o vício. "Foi apenas um sonho ruim", definiu. Tinha então motivos para otimismo, pois estava afastado da droga havia um ano, depois de dois anos de abuso. No curto espaço de tempo entre a entrevista e a morte, teve uma recaída no pesadelo.
À medida que o vício avançava, o cirurgião baiano Samuel Paulo Thomas, de 38 anos, foi percebendo que não podia mais contar com a destreza e a precisão exigidas em uma cirurgia. Se o telefone tocava, convocando-o para uma emergência, mandava avisar que não estava. Sentia-se o tempo todo sonolento e só pensava nas ampolas de dolantina. "Vivia ansioso para ficar a sós com a droga", diz. Esse amargo relacionamento começou de forma banal. Ele fraturou o joelho numa partida de futebol e se livrou das dores lancinantes prescrevendo a si mesmo meia ampola de dolantina. No ano passado, decidiu que era hora de procurar ajuda e passou cinqüenta dias numa clínica de recuperação no interior paulista. "Reassumi o controle de minha vida", comemora. "A sensação de estar limpo é maravilhosa." Estar limpo, no jargão dos dependentes, traduz-se por não usar drogas.

Claudio Rossi
"Eu era um drogado de luxo. No hospital, bastava abrir o armário e me servir à vontade. Todos os meus colegas sabiam do meu vício e não fizeram nada para me ajudar."
José Antonio Ribeiro Silva, 49 anos, ex-anestesista e hoje psiquiatra

A coragem de Thomas em expor o próprio vício é exemplar, mas uma raridade. Se para qualquer pessoa é difícil assumir a dependência química, que dirá para os médicos, acostumados à idéia de que os doentes são sempre os outros. Por isso tantos personagens desta reportagem são identificados apenas por iniciais. Os colegas de trabalho, quando descobrem, na maioria dos casos, optam pelo silêncio. Nos dois maiores conselhos regionais de medicina, o de São Paulo e o do Rio, existem apenas oito processos administrativos sobre fraude, furto ou comportamento indevido relacionados a opiáceos. "As denúncias não chegam aos conselhos por causa do corporativismo", explica Rui Haddad, conselheiro do CRM do Rio. Na prática diária da medicina, médico não denuncia médico. É assim no mundo inteiro. "Muitas vezes os amigos não fazem nada com medo de tirar o ganha-pão do dependente", disse a VEJA John Dunn, da Universidade de Londres, especialista em abuso de substâncias químicas. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, o código de ética médica é explícito sobre o assunto: é considerada falta grave saber da dependência de um colega e ficar de braços cruzados. No Brasil, de modo geral, os médicos fazem vista grossa. "É um absurdo, sobretudo quando há vidas em jogo", critica o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo. "O comportamento ético seria encaminhar o dependente para tratamento."
Água destilada – "Você está usando morfina, não é?" Diante da pergunta do diretor de um hospital em São Paulo, o clínico-geral L.B., de 38 anos, estremeceu. Admitiu o vício e esperou pelo pior. Que nada. O chefe simplesmente aconselhou: "Tudo bem. Só não pegue mais daqui do hospital". Com a conivência do colega, o doutor L.B. viveu oito anos embalado por coquetéis de opiáceos. No auge do vício, oferecia-se para trabalhar nas ambulâncias. Durante o transporte, o médico fica sozinho com o paciente – geralmente em estado grave, sem condições de perceber o que acontece a sua volta. "Nessas ocasiões, era uma ampola de morfina para o doente, uma para mim", conta ele. Para abandonar a droga, L.B. passou quatro meses em um centro de recuperação em Miami, nos Estados Unidos. Traumatizado com a experiência do passado e para não cair em tentação novamente, virou homeopata.
O Ministério da Saúde impõe uma série de normas para o uso de opiáceos. Uma delas prevê o registro dos estoques, das entradas, saídas e da perda desses medicamentos. O Hospital Albert Einstein, em São Paulo, um dos mais conceituados do país, foi além: determinou que uma ampola de entorpecente – ainda que usada – só pode ser descartada por um médico na presença de uma testemunha. Não bastasse, os dois têm de assinar um documento em que se informam o dia, a hora e a quantidade jogada no lixo. Tudo para evitar que algum doutor use o resto de morfina para alimentar o vício.
Na ânsia pela droga, os médicos usam das mais variadas estratégias. Quando é arriscado demais surrupiar a substância das farmácias dos hospitais, alguns trocam o opiáceo receitado para aliviar a dor do paciente por água destilada. Outros usam apenas parte da dose prescrita e ficam com o resto. Em ambos os casos, deixam o doente à mercê da dor. Se as aplicações são constantes, com o tempo as veias enrijecem, dificultando a entrada da droga no organismo. Muitos médicos optam então pelas injeções no pênis ou debaixo da língua. O diploma de medicina concede uma vantagem adicional ao viciado: o médico tem o poder de receitar opiáceos a si mesmo. Nunca os médicos brasileiros estiveram tão vulneráveis ao uso de entorpecentes. A profissão impõe uma rotina desgastante. De cada dez, seis têm mais de três empregos, segundo a Fundação Oswaldo Cruz. Ganham, em média, 1.300 reais por mês, menos do que recebe um metalúrgico do ABC paulista para trabalhar quarenta horas semanais. Há também a pressão da responsabilidade. Muitos relutam em reconhecer que nem sempre é possível salvar uma vida, não importa quanto se lute por ela. A morfina funciona como um lenitivo para a exaustão física e o sofrimento psicológico. Na aula inaugural do curso de residência em anestesiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o psiquiatra Arthur Guerra sempre inclui um alerta sobre os riscos da droga no dia-a-dia dos hospitais. "Os alunos desdenham", lamenta o médico. "Eu não vou ficar assim, professor", dizem os estudantes. É um trágico engano, típico da profissão, acreditar que a roupa branca e um estetoscópio pendurado no pescoço são garantias de imunidade contra os males das pessoas comuns. É um trágico engano.


Reportagem de Cristina Poles e Sandra Boccia, Revista Veja Edição 1 637 - 23/2/2000

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